O livro "Assis Valente_ A jovialidade trágica de José de Assis Valente" conta a solidão de menino pobr, do interior da cidade de Campo Pólvora, na Bahia.Uma infância conturbada com episódios de pura genialidade deu contribuições à obra de Assis Valente.
Pablo Reis
O que seria viver na permanente aventura, na renovação diária da fama e da adoração dos espectadores? O descobrimento de novos lugares, novas pessoas, novos conhecimentos. Era tudo o que diferenciava da vida sem perspectivas, sem cultura e, às vezes, sem comida de José. O alumbramento foi ao ver um palhaço na perna-de-pau, que divulgava a presença da trupe. Era aquela alegria, aquela graça, aquele barulho que José queria para sua vida. O pirralho foi lá e se ofereceu para integrar o Circo Brasileiro. Não ouviu nenhuma resposta. Mas na apresentação da noite, entrou no picadeiro e fez um discurso:
- Essa gente é tal qual passarinhos que armam e desarmam seu ninho, sem achar o lugar certo de construir...
O público aplaudiu, impressionado com a performance do mulatinho esperto. E ele, notando que a simpatia geral tinha sido conquistada, fez o apelo definitivo:
Vocês querem que os artistas trabalhem ou não?
A lotação máxima em todas as sessões na cidade estava garantida, do mesmo jeito que a vaga de Assis Valente no grupo mambembe, o passaporte para fugir da falta de perspectivas.
Essa trajetória começa anos antes, sem a precisão de uma historiografia oficial. Quando se esperam confirmações sobre dados simples da origem de José de Assis de Valente é possível apenas suposições. Há um consenso de que ele tenha nascido em 19 de março (justamente o dia consagrado a São José), mas até mesmo o ano é motivo de controvérsia. "Sobre a infância dele sei pouco. O que mais pude confirmar através de pessoas amigas é que ele nasceu em 1908", acredita a filha única Nara Nadyle Valente Ricardo, que não conviveu com o pai, separado da mulher pouco depois do nascimento da filha.
Alguns pesquisadores, como o biógrafo Francisco Duarte, confirmam que, ao morrer, em 1958, Assis Valente tinha 50 anos. Outros consideram que ele era mais jovem. "É nascido em 1911, portanto tinha 47 anos", avisa o produtor musical Roberto Sant´Anna. Em todos os escritos sobre a vida do artista as duas datas aparecem com igual freqüência. Mas se o ano de nascimento já é motivo de polêmica, as especulações sobre o local já dariam o mote para um samba. O próprio personagem não fazia questão nenhuma de esclarecer, como declarou em uma entrevista, em 1941: "Sou baiano, natural do Campo da Pólvora, em Salvador. Mas dependendo do meu humor, posso ser também de Patioba, ou Bom Jardim", desconversava. A filha Nara confia na origem soteropolitana.
"Só que Assis nasceu no distrito de Bom Jardim, município de Santo Amaro", refuta o radialista e pesquisador Perfilino Neto. Os membros da república santo-amarense fazem questão de reafirmar esta naturalidade. "Todas as evidências mostram isso", reforça o compositor Roberto Mendes, em uma opinião referendada por Caetano Veloso. Roberto Sant´Anna, nascido em Irará, dedica-se a provar que o gênio sambista é de Patioba (atualmente a cidade de Ouriçangas), a alguns quilômetros de sua cidade natal. "Eu não consegui achar o registro dele no cartório, mas tenho o depoimento de uma irmã de criação dele confirmando isso", argumenta com a autoridade de quem passou cinco anos pesquisando a vida deste baiano cada vez mais difícil de confiar.
Passadas as incertezas iniciais, surge o episódio do circo. Qual seria a idade de José, qual a cidade, por quanto tempo ele integrou o grupo? São mais indagações que tornam a vida do compositor uma sucessão de fragmentos biográficos, um palimpsesto de numerosas versões. O webmaster carioca e estudioso da música popular brasileira, Amadeu Bocatius, responde que o fato foi em Senhor do Bonfim, em 1921, no Circo Brasileiro, de propriedade de Francisco Salustiano. O dono, inclusive, teria ficado grato ao menino por salvar todo o faturamento da atração na cidade. A narrativa foi feita pelo próprio a Malba Tahan, filho do célebre matemático, quando Assis Valente resolveu dizer que nascera em Senhor do Bonfim.
Só que em se tratando de Assis Valente nenhum fato tem atestado de veracidade. "Foi mais uma história inventada por ele para enfeitar a própria vida. Não há nenhum registro de ele ter entrado em nenhum circo em lugar nenhum do Brasil. É mais um delírio, nesse caso, provocado pela convivência com o contemporâneo Gordurinha, que realmente correu o mundo em um circo", desaprova Roberto Sant''Anna.
Fantasia da infância
Dar o rumo fantasioso da infância era encontrar o refúgio para um período de sofrimento e solidão. A certidão de nascimento só foi lavrada na juventude, com dados fornecidos por ele próprio, que garantia ser filho de José de Assis Valente e Maria Esteves Valente. Mas o depoimento de uma meia-irmã de nome Beatriz, na biografia A jovialidade trágica de Assis Valente, escrita por Francisco Duarte Silva e Dulcinéa Nunes Gomes e publicada em 1989, revela que ele era filho bastardo de Maria Esteves Valente com um descendente de portugueses chamado Antônio Teodoro dos Santos.
Um ponto consensual entre tantos que pesquisaram a conturbada infância do autor é a sua criação. Assis foi adotado pela família Cana Brasil, em Alagoinhas, como uma espécie de jovem mucamo. O patriarca, o dentista Manuel, usou o pretexto de que aquele mulatinho inteligente não podia se perder sem educação. "Em casa, nós temos dois discos dele, mas as informações sobre a vida dele não são muito claras", diz a secretária executiva Josenilda Medeiros Cana Brasil, neta do seu Manuel. "A memória da vida dele aqui em Alagoinhas se perdeu com a morte de meu avô", lamenta ela, que nem tinha nascido quando o avô morreu e que já foi consultada por um francês sobre essa parte da biografia do compositor. Sabe-se que o menino fazia serviços domésticos, mas aproveitou para aprender com o dono da casa o ofício de protético. Essa será a primeira profissão a dar notoriedade ao baiano.
A outra contestada vitória moral do órfão durante a infância é sua passagem como farmacêutico mirim. Em Senhor do Bonfim, ele teria sido contratado para lavar os frascos de uma botica. "Como sempre foi dotado de uma inteligência fora do comum, aprendeu a misturar as substâncias químicas, até que alguém decidiu colocar ele em uma enrascada", conta Perfilino Neto. Enviaram uma fórmula para ele fabricar, mas o menino José pediu para o responsável retornar e levar a receita de volta. Ele não aviaria aquilo, porque estaria fabricando um veneno. Por ironia, o instinto de preservação da vida do jovem Assis não funcionaria para ele mesmo na idade adulta.
Vocação médica
A vocação para os serviços médicos também seria expressa no curto período em que morou em Salvador. Funcionário do Hospital Santa Izabel, ele impressiona a todos por ser mais talentoso do que a maioria dos empregados. "Nisso, ganha uma bolsa de estudos para o Rio de Janeiro do próprio governador Góes Calmon", sustenta Perfilino Neto, sobre o político que comandou o estado em 1924-28, justamente no período da adolescência de Assis Valente. Para Roberto Sant´Anna, a história tem menos adereços de glória. "Ele viajou para o Rio com a família Cana Brasil, foi o que me falou pessoalmente a irmã adotiva dele, há uns 10 anos, quando ela já tinha 81 anos", garante. "Inclusive, ela ressaltou que, na capital carioca, Assis Valente nunca mais quis ter contato com ela porque só ela sabia de suas verdadeiras origens", apimenta Sant´Anna.
É dessa confusa mistura de desilusão e amargura que nasce a inspiração futura para criar o que seria um sucesso de todos os natais, a canção Boas festas: "Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel/e que a tal felicidade fosse uma brincadeira de papel".
Trágica composição
Assis Valente ignora o talento formidável e faz da suposição de seu fracasso pessoal o drama para se matar
O que teria pensado Assis Valente naqueles últimos minutos no banquinho da Praia do Russell, no Rio de Janeiro? Certamente, no fracasso de uma vida, na desilusão por não ter conseguido virar o notável artista que sonhara para si mesmo. Estava errado Assis Valente. Ali, sentado, seus pensamentos contrariavam tudo o que se achava dele do ponto de vista artístico. Compositor brilhante, criador de músicas que viraram sucessos de imensa penetração popular, ele sequer imaginava que sua obra atravessaria o século sendo regravada sempre com a atualidade das palavras de um profeta social. Ao contrário, estaria pensando no ostracismo, que seria o passo seguinte às notícias relatando a sua morte. Estava errado.
O que pensava Assis Valente prestes a beber dois goles de sua própria tragédia? Certamente no abandono, uma recorrente palavra, um sentimento sempre evocado, em seus quase 50 anos de vida. Pensava no menino saído do interior da Bahia, errante, sem o zelo educador e a proteção amorosa de uma família. Lembrava de toda a saga mítica, uma espécie de epopéia mulata que o transformara de um baiano sem destino, sem lar nem parentes na infância, em um dos mais conhecidos artistas do país. E, para além da fama, a solidão, o abandono. Onde estavam Aracy de Almeida, Carlos Galhardo, Francisco Alves? Para onde tinha ido Carmen Miranda que não estava ali para a última despedida? Ninguém estava ali, só a incômoda presença de um sentimento quase perene de rejeição.
O que pensa Assis Valente enquanto a vista fica turva, a boca começa a secar e os ruídos das crianças brincando na grama em frente começam a ficar inaudíveis? Pensa no orgulho pela filha única, a primeira colocada na seleção para a Escola Nacional de Música e em como seria bom ter uma vida tranqüila e acompanhar o crescimento dela. Valente pensa também se aquela terceira tentativa daria certo e que se desse a última imagem que registraria seria o mar do Rio de Janeiro. Lembra do circo na infância, da farmácia na adolescência, do consultório de próteses já no início da fase adulta. Locais marcantes para uma vida conturbada, cheia de endereços, mas sem a residência da serenidade, sem a morada da tranqüilidade.
São muitas as perguntas sobre aquele momento, mais numerosas ainda são as indagações sobre toda a vida do baiano José de Assis Valente. Falta colar as peças de sua infância, falta solucionar uma incoerência sobre o local de nascimento, definir qual seria a carreira predileta, imaginar de onde saíram os subsídios para sua habilidade criativa, especular sobre a preferência sexual, avaliar como uma vida guindada da mais completa carência (emocional, física, até alimentar) ao estrelato pode ficar em parte obscurecida por um sentimento de automutilação. Há muito mais enigmas do que certezas sobre Assis Valente. Na melodia do hipotético, ao ritmo dos questionamentos e no compasso da dúvida, a vida de quase 47 anos produziu a única convicção de uma absoluta genialidade.
É esse o Assis Valente autor de sucessos atemporais como Camisa listrada, canções tão díspares em sentimentos como Brasil Pandeiro e Boas festas, mas que se destacou como protético afamado, desenhista talentoso e, principalmente, um vencedor de todas as adversidades que lhe apareceram. Um homem cuja complexa personalidade ainda não foi totalmente compreendida pelos familiares, quase meio século depois da morte. "Meu pai foi uma criança triste, um jovem batalhador que aproveitou as pequenas chances que a vida ofereceu", reflete Nara Nadyle Valente Ricardo, a única filha do artista.
Um homem cuja arte ainda arregimenta fãs, depois de décadas de criada. "Do ponto de vista musical, ele entendia profundamente o que fazia, conhecia a língua como ninguém. Sabia que a redondilha era sempre a solução e que a língua é paroxítona", derrama-se o compositor Roberto Mendes. "Ele não podia ser considerado um músico completo, porque não tocava instrumento. Mas era um criador maravilhoso", assevera o médico legista e músico Tuzé de Abreu. "A única desvantagem dele com relação a Caymmi, por exemplo, é o fato deste saber usar muito bem o violão", completa Tuzé, que estudou toda a obra de Assis para compor a trilha sonora de uma peça sobre a personagem.
"Assis era baiano, mas não fez nenhuma música que pudesse ser considerada como retrato do estado", comenta o radialista e pesquisador Perfilino Neto. "Mas há a hipótese do grande sucesso de Ary Barroso, Na Baixa dos Sapateiros, ter sido escrito por ele e vendido para pagar dívidas. Os dois não confirmavam e nem negavam este boato", adverte Perfilino, estudioso da vida e da obra de Barroso. "Não há nenhuma comprovação, por isso nem tem como se cogitar", rebate o produtor musical Roberto Sant''Anna, que pesquisou o rastro de Assis Valente por cinco anos.
Esse é o artista de quem a vida foi tomada por um folhetim, cujos passos estão em poucos documentos oficiais e mais no depoimento de quem conviveu com ele. Nas próprias entrevistas que o compositor deu antes de morrer a contradição dava a cadência. "Se era verdade ou mentira, se era invenção, não vem ao caso, porque é a verdade do próprio Assis", adverte o webmaster carioca e colecionador de biografias da música popular brasileira, Amadeu Bocatius.
Uma existência cheia de incoerências e que até hoje sustenta polêmicas. Uma complexa vida com mais sucessos do que fracassos, mas que foi difícil de suportar. No fim de tarde de 11 de março de 1958, tomba Assis Valente, sem vida, deixando para a posteridade o legado de um gênio. Quanto de alegria e quanto de amargura pôde caber na vida deste homem?
Ufanista do samba
Assis Valente abusa do patriotismo até na escolha de seu último ato. Quanto de uma vida pode ser destruído quando uma frustração profunda vira um fantasma de um amor platônico? Muito da vida de Assis Valente se deteriorou depois daquele "não" de Carmen Miranda. O compositor buscava a obra-prima, já imaginando que ela pudesse ser cantada por sua musa. Seria justamente uma canção que falava do orgulho patriótico, da vitória nacional de ver artistas do país fazendo sucesso no exterior. A exaltação da irreverência e do talento do brasileiro ficaria como contrapartida ao estilo seco do povo americano. Seria uma reedição dos melhores momentos de ufanismo de Gonçalves Dias. Nascia Brasil Pandeiro, a obra-prima.
No início da década de 40, a cantora passaria no Brasil para apresentações. Assis levou a letra esperando nada menos do que a constatação de que era genial. Carmen, então uma cosmopolita, candidata ao estrelato em Hollywood, imaginou que não seria elegante gravar versos como "O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada/ Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato/ Vai entrar no cuscuz, acarajé e abará/ Na Casa Branca já dançou a batucada de ioiô e iaiá". Não gostara do encaminhamento anti-imperialista da composição. Recusou, julgou uma obra sem importância. Neste caso, Carmen estava errada. E o lançamento pelo grupo Anjos do Inferno, a regravação pelos Novos Baianos, em 1972, a utilização como jingle na Copa do Mundo dos Estados Unidos, em 94, e a apropriação, em 2003, como tema para o aniversário de 50 anos da Petrobras ("orgulho do povo brasileiro") são apenas exemplos de como a exaltação permaneceu atual ao longo de décadas.
Em julho de 2004, quando Caetano Veloso apresentava no Teatro Castro Alves o show A foreign sound, a situação era, de alguma forma, irônica. Ele, um santamarense com fama internacional, divulgando um disco e um espetáculo em que cantava apenas músicas americanas. Resolveu fazer uma única concessão. Ao explicar a idéia da turnê, falou, em resumo, que a essência da vontade do artista é criar visando o universal e isso muitas vezes implica em usar outros idiomas. Mas que "o brasileiro, o baiano, nascido em Santo Amaro, Assis Valente pensava diferente", e que por pensar desse jeito fez um samba que Carmen Miranda "considerou inadequado, sem graça, e ele, que já era complicado, complicou-se ainda mais".
Trauma da rejeição
"A recusa da Carmen doeu muito nele, ele nunca mais esqueceu", declarou a cantora Marlene, por ocasião do lançamento do primeiro LP, em 1956, não à toa inteiramente feito com o repertório de Assis (Marlene Apresenta Sucessos de Assis Valente). Magoado, Assis Valente iniciou a fase do rancor, em que usava entrevistas para revelar a amargura. "Carmen esqueceu-se do tempo em que ensaiava Camisa listrada dentro do galinheiro de sua casa em Santa Teresa, pois seu casebre era muito pequeno. Abandonou o Brasil pandeiro, mas não a condeno por isso, pois vi que ela não tinha voz suficiente para interpretá-lo", disparou.
Além do amor próprio ferido, ele tinha o lamento de ver uma das coisas que mais prezava - a identidade cultural brasileira -caindo na vala comum do deslumbramento com o que é de fora. "Ele cuidava muito do seu povo. Tenho isso do Assis como devoção. Por que preciso arrumar minha casa só para receber visita, ou fazer a comida especial para a visita? Eu quero ter isso é o tempo todo, porque eu moro em minha casa", acentua o compositor Roberto Mendes. "Assis Valente foi um dos músicos que, na miséria da vida cotidiana popular do Rio no antigo século XX, criou um ambiente musical no qual fluía a poesia do homem comum como amor ao Brasil e, simultaneamente, como ironia do lugar do povo na brasilidade", garante o cientista político e doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, José Paulo Bandeira da Silveira, autor de tese sobre como a obra do baiano contribui para a definição da estética da brasilidade.
É um símbolo do orgulho nacional que Assis escolhe para ser palco de seu espetáculo de tragédia. Em 13 de maio de 1941, ele se joga do Corcovado. Mas entre sua decisão de fugir de si mesmo e a completa destruição havia o milagre de uma árvore. Setenta metros abaixo do Cristo, os galhos frondosos evitaram que ele se espatifasse. Foi resgatado pelos bombeiros com duas costelas quebradas e muitas escoriações. Nos jornais do dia seguinte, ficou registrado que os policiais tinham ouvido declarações desconexas como "tenho uma mulher e uma filha que não me têm". As páginas especulavam a separação da esposa, dificuldades financeiras e o afastamento dos colegas de música como razões para a surpreendente atitude de um compositor que fazia sucesso com a música Brasil pandeiro, na época tocada por Anjos do Inferno.
Ruína em capítulos
Nos anos seguintes, mais um capítulo da ruína a que ele mesmo se apegava. Assis Valente corta os pulsos, depois de cobranças públicas de uma dívida por Elvira Pagã, que formava dupla com a irmã Rosina e, juntas, eram intérpretes da freguesia do artista. Ele se salva do grave ferimento e passa mais de dez anos sem tentar por fim à vida. Só que em 11 de março de 1958, cede à definitiva vez ao seu destino trágico. De frente para o mar, ele bebe o fim de sua conturbada trajetória. Dissolve todas as glórias em algumas pitadas de veneno para rato. Engole o pirralho que revitalizou um circo, o menino prodígio da farmácia, o desenhista de traços simples e caricatos. Digere o protético afamado, o compositor de sucesso, o baiano vitorioso.
No dia 12 de março de 1958, o jornal A Tarde publica a reportagem de agência de notícias dizendo que ele deixara dois bilhetes. O primeiro endereçado a uma mulher de nome Júlia Maria: "Peço-lhe que não se identifique. Faça de conta que não estou morto e que tudo foi, apenas, uma brincadeira sem graça. Quanto ao dinheiro que lhe emprestei, fica sem efeito, pois rasguei os títulos". Noutro, Assis pede desculpa aos credores por não poder pagar as dívidas.
O sepultamento, no dia 15, tem a presença de artistas como Orlando Silva, Zé Trindade, Black-Out, Russo do Pandeiro e Léo Gomes. Ary Barroso, que tinha bancado as despesas do funeral, faz os discursos, onde clama contra a falta de reconhecimento que impediu o corpo de ser velado na Câmara municipal: "Não permitiríamos nós da Sbacem que levassem você para a Câmara, Assis, porque o atual presidente daquela casa é um homem cujas atitudes sempre foram contra os artistas, é um inimigo do direito autoral que sempre defenderemos e por esse motivo preferimos fazer que somente os teus amigos tivessem o direito de homenagear você pela última vez". A Sociedade Brasileira de Autores Compositores e Escritores de Música, da qual Barroso era o presidente, até hoje repassa os direitos autorais para a filha de Assis Valente.
O último desejo do compositor era de uma mórbida ironia. Pedia ao povo, em cartas, para cantar o samba de sua autoria gravado nas derradeiras semanas pelo cantor Jairo Aguiar, de nome Lamento. Depois de tentar se matar duas vezes sem êxito, Assis escrevia: "Felicidade afogada morreu/ A esperança foi fundo e voltou/ Foi ao fundo e voltou/ Foi ao fundo e ficou". Era a despedida. O fim de uma vida sorvido de forma bem brasileira: com um copo de guaraná.
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