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"Um dia, Assis não se sabe como, o rapaz começou a bater pandeiro. Tanto que surrou, que sentiu sua alma vestida de malandro, com sua calça listrada, camisa de meia manga "palheta", e com muita vontade de brigar, tornou-se um dos nossos grandes compositores e sambistas daquela época ".
















Notícias de Jornais

Assis Valente no Correio da Bahia (1ª parte)

Lista de discussão sobre samba e choro, estilos musicais brasileiros.

Sambista da incerteza
preis@correiodabahia.com.br
Pablo Reis
Biografia de Assis Valente conserva enigmas típicos da sua genialidade
incomum
Acontece que ele era baiano. Talentoso compositor, Assis Valente sucumbiu à
angústia típica dos grandes gênios. E a sua biografia, repleta de enigmas, é
desconhecida de quem cantarola sucessos seus sem o saber. Brasil pandeiro,
imortalizada nos anos 70 pelos Novos Baianos, é considerada a obra-prima do
compositor. Nascido na primeira metade do século XX, morreu em 11 de março
de 1958, confirmando seu destino trágico. Mas deixou seu nome reconhecido na
história da música popular.
Canções eternas
Dois estilos de música nacional brotaram da fértil imaginação sonora do
mulato baiano
Pablo Reis
Qual o sentido do Natal para alguém absolutamente só, sem família, em uma
cidade que não lhe pertence? Aliás, qual o sentido do Natal, uma comemoração
de forte carga consumista, em um país com milhões de miseráveis, repleto de
crianças alienadas da chance de um brinquedo na forma de carinho, um mimo
representado por uma vida digna? As perguntas atormentavam Assis Valente
naquele fim de ano de 1932. Mas foi a solidão pessoal, a chaga do
isolamento, que motivou a composição de Boas festas.
O autor estava em Icaraí, em Niterói, mais afastado de seu círculo de
amizades. Um desenho no quarto do hotel com uma garota observando um sapato
em cima da cama foi a imagem que determinou o estopim criativo do baiano.
"Aos poucos, fui tomado de uma grande tristeza. Pensei na alegria de ser
feliz e não estar só no mundo, como eu, como aquela menina. Quando passou a
tarde, a música já estava feita", declararia, anos depois, para um encarte
de um de seus discos.
A letra é uma sucessão de imagens melancólicas, a infelicidade vai brotando
em um carrossel de sons harmoniosos: "Anoiteceu/o sino gemeu/e a gente
ficou/feliz a rezar/Papai Noel!/ Vê se você tem/ a felicidade/ pra você me
dar". A excessiva lamúria não impediu a canção de ser, nas décadas
seguintes, a melodia preferida de crianças e adultos na época do Natal.
Gravada por Carlos Galhardo, em 1933, a música seria escolhida, em 1956,
como o "hino oficial dos festejos natalinos" pela prefeitura do Rio,
possivelmente a maior homenagem em vida recebida pelo compositor. "Papai
Noel não tinha vindo, mas eu ganhara um grande presente - a melhor de minhas
composições", relatou Assis Valente. Ele não queria que a canção fosse
gravada por Galhardo (que julgava pouco famoso para um sucesso), mas por
Francisco Alves ou Orlando Silva. Contrariando o criador, o cantor precisou
voltar ao estúdio da RCA duas vezes, na década de 40 e 50, para regravar a
música, porque a matriz que fazia as cópias do disco tinha sido desgastada
por tantas prensagens.
Estréia
O ano de 1932 fora especial na vida do então protético. Era justamente a
estréia dele como compositor. O estímulo foi dado por Heitor dos Prazeres,
um carioca de origem humilde que ficou famoso escrevendo músicas para Noel
Rosa. Ele foi o primeiro a notar o talento do baiano e praticamente
obrigá-lo a investir na carreira artística. Antes de sequer imaginar fazer
sucesso na capital carioca, Assis Valente conseguiria incluir mais capítulos
nebulosos em sua biografia. A própria mudança para o Rio de Janeiro é
cercada de controvérsias. O radialista Perfilino Neto afirma que a viagem
fora um prêmio do governador Góes Calmon para que ele estudasse as técnicas
odontológicas na capital da República. Roberto Sant´anna considera mais
plausível o fato dele ter ido com a família Cana Brasil, de Alagoinhas.
"Conversei com a meia-irmã dele, Jovina, no Rio de Janeiro, e ela disse que
ele se desligou de todos depois de ficar famoso, porque a família conhecia
sua origem", relata.
O ano dessa transferência de domicílio é incerto, sabe-se apenas que foi no
final da década de 20. Os dois primeiros ofícios em que se destacou eram
originários da habilidade com as mãos. Na maior parte do tempo, dedicava-se
a polir as coroas, esculpir com esmero as dentaduras dos melhores clientes
do Rio de Janeiro. Em horas vagas, fazia desenhos que vendia para as
revistas Fon Fon e Shimmy. Com as charges, ele tinha certo destaque. Com as
próteses, era considerado o melhor do Distrito Federal. Mas o destino dele
era ganhar a boca dos brasileiros de outra forma.
A facilidade para fazer versos encantou Heitor dos Prazeres, o tutor inicial
de Assis. Heitor levou a letra de Tem francesa no morro para ser gravada por
Araci Cortes. O estilo satírico do baiano já ficava expresso naquele disco
de 78 rotações, lançado pela Columbia, em 1932. Era uma crítica bem humorada
ao uso indiscriminado do galicismo pelos eruditos da alta sociedade: "Donê
muá si vu plé lonér de dance aveque muá/ Dance ioiô/ Dance iaiá". "Você vê
como o sucesso é atual, apenas se mudarmos o uso do francês pelo inglês.
Hoje, temos muitos cantores que querem fazer sucesso para americano ver",
reflete Perfilino Neto, justamente no momento em que o santamarense Caetano
Veloso grava disco e faz show apenas com músicas americanas.
O sucesso relativo muda a rotina no consultório instalado no Edifício
Regina, na Rua da Carioca, com o sócio Aguiar Dantas. Assis abraça a boemia
e cada vez menos bate ponto no trabalho. "Tínhamos um campo grande de
trabalho pela frente, mas àquela altura com o Assis não dava", lembrava
Aguiar. Maior veículo de comunicação da época, o rádio supria uma privação
sentimental do mulato carregada desde o conturbado nascimento. "Tinha uma
necessidade pessoal de projetar-se, de ser visto, aquela carência famigerada
de afeto de órfão saudoso da família desconhecida", escreveu o biógrafo
Francisco Duarte.
Adereço do artista
A profissão consolidada de protético vira apenas um adereço para o sonho de
ser famoso e reconhecido. "O que ele recebia dos clientes pelas próteses
dentárias imediatamente aplicava na compra de roupas novas para
apresentar-se elegante nos palcos dos auditórios e shows", recorda a filha
Nara Nadyle, uma pedagoga aposentada de 63 anos, moradora de Copacabana.
Usando os melhores ternos da época, sempre com o bigode bem aparado e o
cabelo engomado, Assis Valente torna-se figura conhecida do rádio. Para ele,
não era suficiente.
No país governado por Getúlio Vargas, a Revolução Constitucionalista de 1932
motiva o jornal O Globo a publicar, durante meses, uma série de artigos com
o tema Para onde vai o Brasil. Numa antevisão do que, décadas posteriores,
seria chamado de marketing pessoal, Assis Valente compõe um samba e o
oferece ao jornal. O título é Para onde vai o Brasil. A estratégia rende a
ele publicidade gratuita, e o melhor, muitas fotos em diversas edições.
Na fase mais criativa e mais intensa de sua carreira, Assis Valente foi
responsável pela criação de dois gêneros musicais. O primeiro, a marchinha
natalina, originada em Boas festas. O outro estilo, que faz dele um
desbravador de tendências musicais na história cultural do país, é içado em
1933, com a música Cai, cai, balão. É a inauguração das marchinhas juninas.
"Até ali, não se conhecia este tipo de música para São João. Nessa época,
tocava-se muito músicas estrangeiras, como polca, rancheira, fox, valsa e
modinha", corrige Perfilino Neto.
A inspiração atinge Lamartine Babo, Ari Barroso, Luís Peixoto, até virar, na
década de 40, o estilo próprio de Luiz Gonzaga. Setenta anos depois, a
cantiga ainda é lembrada em festinhas escolares. "Um autor que compôs duas
músicas como essa não precisava nem mais de Brasil pandeiro", comenta
Perfilino, sobre a canção que desdenha da condição dos que experimentam o
sucesso fugaz e ascendente e depois fenecem com o apagar da chama da
notoriedade.
Vivendo na fase de vôo a estratos cada vez mais altos, Assis Valente não
imaginava, na época, que a lição de moral de sua letra pudesse ser aplicada
ao criador. Ao longo da década de 30, ele plana no auge de um sucesso sem
divisas. Em 1935, recebe o convite do governo da Bahia para organizar e
presidir um concurso de composições para o São João. As autoridades
justificam a homenagem como uma retribuição ao "conterrâneo ilustre e
vencedor". Ele é recebido em Salvador com status de astro por políticos e
artistas.
Era o que faltava para perceber que jamais a profissão de protético poderia
lhe dar uma fama de tão grande proporção. Assis Valente, o mulato baiano que
tinha ido para o Rio de Janeiro tentando apagar o rastro de uma história de
amargura e abandono, voltava como ídolo, como referência do sucesso. Só que
o balão de sua vida ainda tinha uma outra parte da curva para executar.
Cronista do cotidiano
A inspiração do artista surgia nas cenas simples e divertidas do dia-a-dia
Pablo Reis
O que fazer para demonstrar que o amor a uma filha não pode ser apagado em
nenhum momento? Assis Valente sentia a paixão incomensurável e resolveu
tatuar o nome Nara Nadyle mais de uma vez na pele. A vontade de fazer uma
exposição epidérmica de sua afeição filial surgia em um tempo em que a
atitude não tinha virado um modismo capaz de fazer namorados com dois meses
de relacionamento trocarem declarações gravadas no tornozelo ou no pulso.
"Era o jeito de ele provar para mim um amor paternal profundo e eterno como
o que sinto por ele também", emociona-se Nara Nadyle, mãe de Fernando e
Marcelo, avó de João Vítor.
Até o nascimento da filha, em 31 de janeiro de 1941, a vida de Assis Valente
pouco tinha dos dogmas familiares tradicionais. Gostava de festas, de
apresentações na rádio, de participar de coquetéis, de estar no meio de
gente importante. A maioria das fotos mostram o largo sorriso e o traje
impecáveis. "Ele usava terno de linho Braspérola, elegantérrimo. Era só
parar na esquina que o vento chegava a balançar o tecido", sustenta Roberto
Sant´anna. "O que meu pai ganhava no consultório imediatamente comprava
roupas novas para apresentar-se elegante nos palcos dos auditórios e shows.
Aliás, uma de suas grandes características era o seu bom gosto no trajar",
garante, orgulhosa, a filha Nara Nadyle.
Sexualidade
Mais do que a fama de requintado nas roupas, o dândi do samba atraiu todo o
tipo de comentário sobre sua sexualidade. "Assis Valente era homossexual e
quem convivia com ele respeitava isso", afirma o baiano Valter Levita,
famoso cantor no Rio de Janeiro nas décadas de 40 e 50, e que acompanhou um
período da vida do compositor. "O problema eram as pessoas que não eram
próximas dele e, de certa forma, discriminavam", completa Levita, hoje com
84 anos. "Eu tenho a teoria de que se ele conseguisse resistir à idéia de se
matar por mais uns três anos, certamente seria menos angustiado. Porque nos
anos 60 as pessoas eram mais abertas aos relacionamentos homossexuais e
Assis teria menos problemas. Ele apanhou muito por causa disso, inclusive,
literalmente", revela Roberto Sant´anna. "Ser gay hoje dá ibope, é status, é
currículo. Naquela época, o cara fazia as coisas escondido, bem reprimido",
justifica Perfilino Neto.
A opção sexual de Assis Valente se confrontava com um amor platônico, uma
paixão artística pela grande musa de sua obra: Carmen Miranda. A visão
deslumbrante da performance da cantora, atriz e vedete no Teatro João
Caetano, ainda em 1932, foi decisiva: "Esta é a pessoa para dar vida aos
meus sambas", pensou Assis. Faltava a chance de dizer a ela que nenhuma
composição soaria tão verdadeira em sua voz quanto as que ele fizesse.
Assis Valente foi ardiloso. Começou a ter aulas de violão com Josué de
Barros, o descobridor de Carmen, na esperança de que ela compartilhasse da
mesma classe. Mas a cantora não tinha interesse no conhecimento teórico de
instrumentos. Em alguns eventos, os dois chegaram a se cruzar, mas o
acanhamento diante do ídolo e a esperança de que alguém os apresentasse
impedia Assis Valente de fazer o primeiro contato. Até o compositor resolver
forjar um pretexto com a linguagem que mais dominava: a música. Criou a
letra de Etc e levou para a estrela. Carmen gostou imediatamente e lançou a
canção pelos microfones da Rádio Mayrink Veiga.
Glória e perdição
Era o início da parceria entre o compositor e sua principal intérprete.
Carmen gravaria 24 das quase 150 músicas de Assis Valente, fazendo de
praticamente todas sucessos populares. Ela seria a glória e também a
perdição do baiano. O jeito irreverente, a voz maliciosa, combinavam de
forma incomum com as letras debochadas. Na posição de cronista do cotidiano,
ele pensava em muitas de suas obras batucando no balcão do consultório,
revivendo algumas cenas populares, ou temas de ampla discussão pública. Como
a zombaria diante dos vaticínios apocalípticos por causa de um eclipse
total, no final da década de 30, expressa em E o Mundo não se acabou
(Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar/ Por causa disso a minha
gente lá de casa começou a rezar/ E até disseram que o sol ia nascer antes
da madrugada/ Por causa disso nessa noite lá no morro não se fez batucada).
A parceria entre a voz de Carmen e a originalidade de Assis também produziu
o monopólio das músicas carnavalescas da época. Na festa de 1938, não se
tocava outra coisa a não ser Camisa listrada: "Vestiu uma camisa listrada e
saiu por aí/ Em vez de tomar chá com torrada/ Ele bebeu Parati (...) Tirou o
seu anel de doutor/ Para não dar o que falar/ E saiu dizendo: Mamãe, eu
quero mamar". "Naquela época do Carnaval de rua, quando a multidão escolhia
uma música não dava outra coisa. O cantor dizia, eu ganhei o Carnaval",
recorda Valter Levita, 85 anos, que em 1960 deu esse grito com o sucesso de
Maria tá.
Geralmente solitário na vida e na arte, Assis Valente juntou sua
musicalidade intuitiva com a contribuição de parceiros em encontros
considerados instantâneos. Foram 46 músicas em co-autoria. Os mais
freqüentes sócios musicais foram Leandro Medeiros (seis letras), Júlio
Zamorano (cinco letras), Zequinha Reis e Álvaro da Silva (três letras,
cada). As parcerias extemporâneas mais importantes foram com Lamartine Babo
(em Janete, de 1936), Humberto Porto (Batuca no chão) e Luiz Gonzaga (com
Pão duro, de 1946). Esta música, inclusive, seria praticamente toda
creditada ao Rei do Baião, apesar de ele fazer questão de dizer que só a
harmonização e a melodia não eram de Assis. É que nesta época, o baiano já
não gozava do mesmo destaque dos anos 30.
Fator determinante para o início das trevas a que o compositor se
auto-exilou foi a viagem de Carmen Miranda. Em 1939, o empresário americano
Lee Schubert assiste a uma apresentação dela no Cassino da Urca. Decide que
a América precisa conhecer aquela adorável pequena. Ela muda para os Estados
Unidos, junto com o grupo Bando da Lua, que freqüentemente gravava as
músicas de Assis. A ação de Schubert foi como um assalto na carteira
sentimental do baiano. Ele perdia dois intérpretes favoritos, a grande musa
e ainda a inspiração para compor pensando na voz que entoaria as frases.
"Tem essa coisa do intérprete estimular o compositor. Carmen era assim pra
ele", reflete Roberto Mendes, que tem boa parte da obra feita
especificamente para a voz de Maria Bethânia. "Só que Caymmi quando chegou
ao Rio também fez música para ela. E dizem que namorou com ela, o que
despertou o ciúme de Assis", considera Mendes, para quem há duas formas de
fazer música: "Copiando bem ou copiando mal Caymmi e Gonzaga". A despedida
levou à tona a própria certeza de que Assis tinha nascido para ser
abandonado, um predestinado a sofrer.
Em 23 de dezembro de 1939, sem avisar aos amigos, sem fazer festa ou alarde,
ele casa com a datilógrafa Nadyle da Silva Santos, que ainda nem completara
20 anos. Um ano e um mês depois, nascia Nara Nadyle. Mas o que era a
promessa do primeiro núcleo familiar na vida de Assis Valente virou apenas
mais uma lembrança fugaz da felicidade. A separação é pouco tempo depois do
nascimento da filha, que passa a ser criada pelos avós, com permissões para
visitas ligeiras. "Meu pai sempre aceitou as regras e os limites que minha
família impôs, pois não tinha a menor intenção de criar atritos familiares",
reflete Nara Nadyle. "À medida que fui crescendo e com maior compreensão dos
fatos, passamos a nos encontrar com mais freqüência", completa.
Mesmo a distância, pai e filha continuam a compartilhar o carinho mútuo.
Desde os 7 anos, ela chega da escola e vai direto para a radiola colocar
algum de seus discos da coleção. Assis fica radiante ao saber que, aos 13
anos, ela é aprovada em primeiro lugar para a Escola Nacional de Música, com
nota máxima. A menina que era exímia pianista, definitivamente herdara uma
aptidão que era motivo de orgulho paterno. "Nunca o tinha visto daquela
maneira. Parecia que queria gritar ao mundo que a filha tinha uma veia
musical igual à dele", emociona-se Nara Nadyle. A alegria com o progresso da
filha era um domínio passageiro da claridade sobre as sombras que ele
reservara a si mesmo. A inata predisposição para a tragédia era um motivo.
Carmen Miranda seria o outro.

Assis Valente no Correio da Bahia (2ª parte)

Lista de discussão sobre samba e choro, estilos musicais brasileiros.

Solidão de menino
Uma infância conturbada com episódios de pura genialidade deu contribuições
à obra de Assis Valente
Pablo Reis
O que seria viver na permanente aventura, na renovação diária da fama e da
adoração dos espectadores? O descobrimento de novos lugares, novas pessoas,
novos conhecimentos. Era tudo o que diferenciava da vida sem perspectivas,
sem cultura e, às vezes, sem comida de José. O alumbramento foi ao ver um
palhaço na perna-de-pau, que divulgava a presença da trupe. Era aquela
alegria, aquela graça, aquele barulho que José queria para sua vida. O
pirralho foi lá e se ofereceu para integrar o Circo Brasileiro. Não ouviu
nenhuma resposta. Mas na apresentação da noite, entrou no picadeiro e fez um
discurso:
- Essa gente é tal qual passarinhos que armam e desarmam seu ninho, sem
achar o lugar certo de construir...
O público aplaudiu, impressionado com a performance do mulatinho esperto. E
ele, notando que a simpatia geral tinha sido conquistada, fez o apelo
definitivo:
Vocês querem que os artistas trabalhem ou não?
A lotação máxima em todas as sessões na cidade estava garantida, do mesmo
jeito que a vaga de Assis Valente no grupo mambembe, o passaporte para fugir
da falta de perspectivas.
Essa trajetória começa anos antes, sem a precisão de uma historiografia
oficial. Quando se esperam confirmações sobre dados simples da origem de
José de Assis de Valente é possível apenas suposições. Há um consenso de que
ele tenha nascido em 19 de março (justamente o dia consagrado a São José),
mas até mesmo o ano é motivo de controvérsia. "Sobre a infância dele sei
pouco. O que mais pude confirmar através de pessoas amigas é que ele nasceu
em 1908", acredita a filha única Nara Nadyle Valente Ricardo, que não
conviveu com o pai, separado da mulher pouco depois do nascimento da filha.
Alguns pesquisadores, como o biógrafo Francisco Duarte, confirmam que, ao
morrer, em 1958, Assis Valente tinha 50 anos. Outros consideram que ele era
mais jovem. "É nascido em 1911, portanto tinha 47 anos", avisa o produtor
musical Roberto Sant´Anna. Em todos os escritos sobre a vida do artista as
duas datas aparecem com igual freqüência. Mas se o ano de nascimento já é
motivo de polêmica, as especulações sobre o local já dariam o mote para um
samba. O próprio personagem não fazia questão nenhuma de esclarecer, como
declarou em uma entrevista, em 1941: "Sou baiano, natural do Campo da
Pólvora, em Salvador. Mas dependendo do meu humor, posso ser também de
Patioba, ou Bom Jardim", desconversava. A filha Nara confia na origem
soteropolitana.
"Só que Assis nasceu no distrito de Bom Jardim, município de Santo Amaro",
refuta o radialista e pesquisador Perfilino Neto. Os membros da república
santo-amarense fazem questão de reafirmar esta naturalidade. "Todas as
evidências mostram isso", reforça o compositor Roberto Mendes, em uma
opinião referendada por Caetano Veloso. Roberto Sant´Anna, nascido em Irará,
dedica-se a provar que o gênio sambista é de Patioba (atualmente a cidade de
Ouriçangas), a alguns quilômetros de sua cidade natal. "Eu não consegui
achar o registro dele no cartório, mas tenho o depoimento de uma irmã de
criação dele confirmando isso", argumenta com a autoridade de quem passou
cinco anos pesquisando a vida deste baiano cada vez mais difícil de confiar.
Passadas as incertezas iniciais, surge o episódio do circo. Qual seria a
idade de José, qual a cidade, por quanto tempo ele integrou o grupo? São
mais indagações que tornam a vida do compositor uma sucessão de fragmentos
biográficos, um palimpsesto de numerosas versões. O webmaster carioca e
estudioso da música popular brasileira, Amadeu Bocatius, responde que o fato
foi em Senhor do Bonfim, em 1921, no Circo Brasileiro, de propriedade de
Francisco Salustiano. O dono, inclusive, teria ficado grato ao menino por
salvar todo o faturamento da atração na cidade. A narrativa foi feita pelo
próprio a Malba Tahan, filho do célebre matemático, quando Assis Valente
resolveu dizer que nascera em Senhor do Bonfim.
Só que em se tratando de Assis Valente nenhum fato tem atestado de
veracidade. "Foi mais uma história inventada por ele para enfeitar a própria
vida. Não há nenhum registro de ele ter entrado em nenhum circo em lugar
nenhum do Brasil. É mais um delírio, nesse caso, provocado pela convivência
com o contemporâneo Gordurinha, que realmente correu o mundo em um circo",
desaprova Roberto Sant''Anna.
Fantasia da infância
Dar o rumo fantasioso da infância era encontrar o refúgio para um período de
sofrimento e solidão. A certidão de nascimento só foi lavrada na juventude,
com dados fornecidos por ele próprio, que garantia ser filho de José de
Assis Valente e Maria Esteves Valente. Mas o depoimento de uma meia-irmã de
nome Beatriz, na biografia A jovialidade trágica de Assis Valente, escrita
por Francisco Duarte Silva e Dulcinéa Nunes Gomes e publicada em 1989,
revela que ele era filho bastardo de Maria Esteves Valente com um
descendente de portugueses chamado Antônio Teodoro dos Santos.
Um ponto consensual entre tantos que pesquisaram a conturbada infância do
autor é a sua criação. Assis foi adotado pela família Cana Brasil, em
Alagoinhas, como uma espécie de jovem mucamo. O patriarca, o dentista
Manuel, usou o pretexto de que aquele mulatinho inteligente não podia se
perder sem educação. "Em casa, nós temos dois discos dele, mas as
informações sobre a vida dele não são muito claras", diz a secretária
executiva Josenilda Medeiros Cana Brasil, neta do seu Manuel. "A memória da
vida dele aqui em Alagoinhas se perdeu com a morte de meu avô", lamenta ela,
que nem tinha nascido quando o avô morreu e que já foi consultada por um
francês sobre essa parte da biografia do compositor. Sabe-se que o menino
fazia serviços domésticos, mas aproveitou para aprender com o dono da casa o
ofício de protético. Essa será a primeira profissão a dar notoriedade ao
baiano.
A outra contestada vitória moral do órfão durante a infância é sua passagem
como farmacêutico mirim. Em Senhor do Bonfim, ele teria sido contratado para
lavar os frascos de uma botica. "Como sempre foi dotado de uma inteligência
fora do comum, aprendeu a misturar as substâncias químicas, até que alguém
decidiu colocar ele em uma enrascada", conta Perfilino Neto. Enviaram uma
fórmula para ele fabricar, mas o menino José pediu para o responsável
retornar e levar a receita de volta. Ele não aviaria aquilo, porque estaria
fabricando um veneno. Por ironia, o instinto de preservação da vida do jovem
Assis não funcionaria para ele mesmo na idade adulta.
Vocação médica
A vocação para os serviços médicos também seria expressa no curto período em
que morou em Salvador. Funcionário do Hospital Santa Izabel, ele impressiona
a todos por ser mais talentoso do que a maioria dos empregados. "Nisso,
ganha uma bolsa de estudos para o Rio de Janeiro do próprio governador Góes
Calmon", sustenta Perfilino Neto, sobre o político que comandou o estado em
1924-28, justamente no período da adolescência de Assis Valente. Para
Roberto Sant´Anna, a história tem menos adereços de glória. "Ele viajou para
o Rio com a família Cana Brasil, foi o que me falou pessoalmente a irmã
adotiva dele, há uns 10 anos, quando ela já tinha 81 anos", garante.
"Inclusive, ela ressaltou que, na capital carioca, Assis Valente nunca mais
quis ter contato com ela porque só ela sabia de suas verdadeiras origens",
apimenta Sant´Anna.
É dessa confusa mistura de desilusão e amargura que nasce a inspiração
futura para criar o que seria um sucesso de todos os natais, a canção Boas
festas: "Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel/e que a tal
felicidade fosse uma brincadeira de papel".
Trágica composição
Assis Valente ignora o talento formidável e faz da suposição de seu fracasso
pessoal o drama para se matar
Pablo Reis
O que teria pensado Assis Valente naqueles últimos minutos no banquinho da
Praia do Russell, no Rio de Janeiro? Certamente, no fracasso de uma vida, na
desilusão por não ter conseguido virar o notável artista que sonhara para si
mesmo. Estava errado Assis Valente. Ali, sentado, seus pensamentos
contrariavam tudo o que se achava dele do ponto de vista artístico.
Compositor brilhante, criador de músicas que viraram sucessos de imensa
penetração popular, ele sequer imaginava que sua obra atravessaria o século
sendo regravada sempre com a atualidade das palavras de um profeta social.
Ao contrário, estaria pensando no ostracismo, que seria o passo seguinte às
notícias relatando a sua morte. Estava errado.
O que pensava Assis Valente prestes a beber dois goles de sua própria
tragédia? Certamente no abandono, uma recorrente palavra, um sentimento
sempre evocado, em seus quase 50 anos de vida. Pensava no menino saído do
interior da Bahia, errante, sem o zelo educador e a proteção amorosa de uma
família. Lembrava de toda a saga mítica, uma espécie de epopéia mulata que o
transformara de um baiano sem destino, sem lar nem parentes na infância, em
um dos mais conhecidos artistas do país. E, para além da fama, a solidão, o
abandono. Onde estavam Aracy de Almeida, Carlos Galhardo, Francisco Alves?
Para onde tinha ido Carmen Miranda que não estava ali para a última
despedida? Ninguém estava ali, só a incômoda presença de um sentimento quase
perene de rejeição.
O que pensa Assis Valente enquanto a vista fica turva, a boca começa a secar
e os ruídos das crianças brincando na grama em frente começam a ficar
inaudíveis? Pensa no orgulho pela filha única, a primeira colocada na
seleção para a Escola Nacional de Música e em como seria bom ter uma vida
tranqüila e acompanhar o crescimento dela. Valente pensa também se aquela
terceira tentativa daria certo e que se desse a última imagem que
registraria seria o mar do Rio de Janeiro. Lembra do circo na infância, da
farmácia na adolescência, do consultório de próteses já no início da fase
adulta. Locais marcantes para uma vida conturbada, cheia de endereços, mas
sem a residência da serenidade, sem a morada da tranqüilidade.
São muitas as perguntas sobre aquele momento, mais numerosas ainda são as
indagações sobre toda a vida do baiano José de Assis Valente. Falta colar as
peças de sua infância, falta solucionar uma incoerência sobre o local de
nascimento, definir qual seria a carreira predileta, imaginar de onde saíram
os subsídios para sua habilidade criativa, especular sobre a preferência
sexual, avaliar como uma vida guindada da mais completa carência (emocional,
física, até alimentar) ao estrelato pode ficar em parte obscurecida por um
sentimento de automutilação. Há muito mais enigmas do que certezas sobre
Assis Valente. Na melodia do hipotético, ao ritmo dos questionamentos e no
compasso da dúvida, a vida de quase 47 anos produziu a única convicção de
uma absoluta genialidade.
É esse o Assis Valente autor de sucessos atemporais como Camisa listrada,
canções tão díspares em sentimentos como Brasil Pandeiro e Boas festas, mas
que se destacou como protético afamado, desenhista talentoso e,
principalmente, um vencedor de todas as adversidades que lhe apareceram. Um
homem cuja complexa personalidade ainda não foi totalmente compreendida
pelos familiares, quase meio século depois da morte. "Meu pai foi uma
criança triste, um jovem batalhador que aproveitou as pequenas chances que a
vida ofereceu", reflete Nara Nadyle Valente Ricardo, a única filha do
artista.
Um homem cuja arte ainda arregimenta fãs, depois de décadas de criada. "Do
ponto de vista musical, ele entendia profundamente o que fazia, conhecia a
língua como ninguém. Sabia que a redondilha era sempre a solução e que a
língua é paroxítona", derrama-se o compositor Roberto Mendes. "Ele não podia
ser considerado um músico completo, porque não tocava instrumento. Mas era
um criador maravilhoso", assevera o médico legista e músico Tuzé de Abreu.
"A única desvantagem dele com relação a Caymmi, por exemplo, é o fato deste
saber usar muito bem o violão", completa Tuzé, que estudou toda a obra de
Assis para compor a trilha sonora de uma peça sobre a personagem.
"Assis era baiano, mas não fez nenhuma música que pudesse ser considerada
como retrato do estado", comenta o radialista e pesquisador Perfilino Neto.
"Mas há a hipótese do grande sucesso de Ary Barroso, Na Baixa dos
Sapateiros, ter sido escrito por ele e vendido para pagar dívidas. Os dois
não confirmavam e nem negavam este boato", adverte Perfilino, estudioso da
vida e da obra de Barroso. "Não há nenhuma comprovação, por isso nem tem
como se cogitar", rebate o produtor musical Roberto Sant''Anna, que
pesquisou o rastro de Assis Valente por cinco anos.
Esse é o artista de quem a vida foi tomada por um folhetim, cujos passos
estão em poucos documentos oficiais e mais no depoimento de quem conviveu
com ele. Nas próprias entrevistas que o compositor deu antes de morrer a
contradição dava a cadência. "Se era verdade ou mentira, se era invenção,
não vem ao caso, porque é a verdade do próprio Assis", adverte o webmaster
carioca e colecionador de biografias da música popular brasileira, Amadeu
Bocatius.
Uma existência cheia de incoerências e que até hoje sustenta polêmicas. Uma
complexa vida com mais sucessos do que fracassos, mas que foi difícil de
suportar. No fim de tarde de 11 de março de 1958, tomba Assis Valente, sem
vida, deixando para a posteridade o legado de um gênio. Quanto de alegria e
quanto de amargura pôde caber na vida deste homem?
Ufanista do samba
Assis Valente abusa do patriotismo até na escolha de seu último ato
Pablo Reis
Quanto de uma vida pode ser destruído quando uma frustração profunda vira um
fantasma de um amor platônico? Muito da vida de Assis Valente se deteriorou
depois daquele "não" de Carmen Miranda. O compositor buscava a obra-prima,
já imaginando que ela pudesse ser cantada por sua musa. Seria justamente uma
canção que falava do orgulho patriótico, da vitória nacional de ver artistas
do país fazendo sucesso no exterior. A exaltação da irreverência e do
talento do brasileiro ficaria como contrapartida ao estilo seco do povo
americano. Seria uma reedição dos melhores momentos de ufanismo de Gonçalves
Dias. Nascia Brasil Pandeiro, a obra-prima.
No início da década de 40, a cantora passaria no Brasil para apresentações.
Assis levou a letra esperando nada menos do que a constatação de que era
genial. Carmen, então uma cosmopolita, candidata ao estrelato em Hollywood,
imaginou que não seria elegante gravar versos como "O Tio Sam está querendo
conhecer a nossa batucada/ Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu
prato/ Vai entrar no cuscuz, acarajé e abará/ Na Casa Branca já dançou a
batucada de ioiô e iaiá". Não gostara do encaminhamento anti-imperialista da
composição. Recusou, julgou uma obra sem importância. Neste caso, Carmen
estava errada. E o lançamento pelo grupo Anjos do Inferno, a regravação
pelos Novos Baianos, em 1972, a utilização como jingle na Copa do Mundo dos
Estados Unidos, em 94, e a apropriação, em 2003, como tema para o
aniversário de 50 anos da Petrobras ("orgulho do povo brasileiro") são
apenas exemplos de como a exaltação permaneceu atual ao longo de décadas.
Em julho de 2004, quando Caetano Veloso apresentava no Teatro Castro Alves o
show A foreign sound, a situação era, de alguma forma, irônica. Ele, um
santamarense com fama internacional, divulgando um disco e um espetáculo em
que cantava apenas músicas americanas. Resolveu fazer uma única concessão.
Ao explicar a idéia da turnê, falou, em resumo, que a essência da vontade do
artista é criar visando o universal e isso muitas vezes implica em usar
outros idiomas. Mas que "o brasileiro, o baiano, nascido em Santo Amaro,
Assis Valente pensava diferente", e que por pensar desse jeito fez um samba
que Carmen Miranda "considerou inadequado, sem graça, e ele, que já era
complicado, complicou-se ainda mais".
Trauma da rejeição
"A recusa da Carmen doeu muito nele, ele nunca mais esqueceu", declarou a
cantora Marlene, por ocasião do lançamento do primeiro LP, em 1956, não à
toa inteiramente feito com o repertório de Assis (Marlene Apresenta Sucessos
de Assis Valente). Magoado, Assis Valente iniciou a fase do rancor, em que
usava entrevistas para revelar a amargura. "Carmen esqueceu-se do tempo em
que ensaiava Camisa listrada dentro do galinheiro de sua casa em Santa
Teresa, pois seu casebre era muito pequeno. Abandonou o Brasil pandeiro, mas
não a condeno por isso, pois vi que ela não tinha voz suficiente para
interpretá-lo", disparou.
Além do amor próprio ferido, ele tinha o lamento de ver uma das coisas que
mais prezava - a identidade cultural brasileira -caindo na vala comum do
deslumbramento com o que é de fora. "Ele cuidava muito do seu povo. Tenho
isso do Assis como devoção. Por que preciso arrumar minha casa só para
receber visita, ou fazer a comida especial para a visita? Eu quero ter isso
é o tempo todo, porque eu moro em minha casa", acentua o compositor Roberto
Mendes. "Assis Valente foi um dos músicos que, na miséria da vida cotidiana
popular do Rio no antigo século XX, criou um ambiente musical no qual fluía
a poesia do homem comum como amor ao Brasil e, simultaneamente, como ironia
do lugar do povo na brasilidade", garante o cientista político e doutor pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, José Paulo Bandeira da Silveira,
autor de tese sobre como a obra do baiano contribui para a definição da
estética da brasilidade.
É um símbolo do orgulho nacional que Assis escolhe para ser palco de seu
espetáculo de tragédia. Em 13 de maio de 1941, ele se joga do Corcovado. Mas
entre sua decisão de fugir de si mesmo e a completa destruição havia o
milagre de uma árvore. Setenta metros abaixo do Cristo, os galhos frondosos
evitaram que ele se espatifasse. Foi resgatado pelos bombeiros com duas
costelas quebradas e muitas escoriações. Nos jornais do dia seguinte, ficou
registrado que os policiais tinham ouvido declarações desconexas como "tenho
uma mulher e uma filha que não me têm". As páginas especulavam a separação
da esposa, dificuldades financeiras e o afastamento dos colegas de música
como razões para a surpreendente atitude de um compositor que fazia sucesso
com a música Brasil pandeiro, na época tocada por Anjos do Inferno.
Ruína em capítulos
Nos anos seguintes, mais um capítulo da ruína a que ele mesmo se apegava.
Assis Valente corta os pulsos, depois de cobranças públicas de uma dívida
por Elvira Pagã, que formava dupla com a irmã Rosina e, juntas, eram
intérpretes da freguesia do artista. Ele se salva do grave ferimento e passa
mais de dez anos sem tentar por fim à vida. Só que em 11 de março de 1958,
cede à definitiva vez ao seu destino trágico. De frente para o mar, ele bebe
o fim de sua conturbada trajetória. Dissolve todas as glórias em algumas
pitadas de veneno para rato. Engole o pirralho que revitalizou um circo, o
menino prodígio da farmácia, o desenhista de traços simples e caricatos.
Digere o protético afamado, o compositor de sucesso, o baiano vitorioso.
No dia 12 de março de 1958, o jornal A Tarde publica a reportagem de agência
de notícias dizendo que ele deixara dois bilhetes. O primeiro endereçado a
uma mulher de nome Júlia Maria: "Peço-lhe que não se identifique. Faça de
conta que não estou morto e que tudo foi, apenas, uma brincadeira sem graça.
Quanto ao dinheiro que lhe emprestei, fica sem efeito, pois rasguei os
títulos". Noutro, Assis pede desculpa aos credores por não poder pagar as
dívidas.
O sepultamento, no dia 15, tem a presença de artistas como Orlando Silva, Zé
Trindade, Black-Out, Russo do Pandeiro e Léo Gomes. Ary Barroso, que tinha
bancado as despesas do funeral, faz os discursos, onde clama contra a falta
de reconhecimento que impediu o corpo de ser velado na Câmara municipal:
"Não permitiríamos nós da Sbacem que levassem você para a Câmara, Assis,
porque o atual presidente daquela casa é um homem cujas atitudes sempre
foram contra os artistas, é um inimigo do direito autoral que sempre
defenderemos e por esse motivo preferimos fazer que somente os teus amigos
tivessem o direito de homenagear você pela última vez". A Sociedade
Brasileira de Autores Compositores e Escritores de Música, da qual Barroso
era o presidente, até hoje repassa os direitos autorais para a filha de
Assis Valente.
O último desejo do compositor era de uma mórbida ironia. Pedia ao povo, em
cartas, para cantar o samba de sua autoria gravado nas derradeiras semanas
pelo cantor Jairo Aguiar, de nome Lamento. Depois de tentar se matar duas
vezes sem êxito, Assis escrevia: "Felicidade afogada morreu/ A esperança foi
fundo e voltou/ Foi ao fundo e voltou/ Foi ao fundo e ficou". Era a
despedida. O fim de uma vida sorvido de forma bem brasileira: com um copo de
guaraná.

Assis Valente, o sambista trágico

Há 90 anos nascia o compositor amargurado que fez alegres sambas como ...E o Mundo Não se Acabou, e clássicos da MPB, como Brasil Pandeiro, Boas Festas e Cai, Cai, Balão

Nana Vaz de Castro
16/03/2001
Assis Valente teve uma vida atormentada. Os muitos sucessos de sua autoria não foram suficientes para impedir que ele tentasse tirar a própria vida três vezes antes de finalmente conseguir, em 10 de março de 1958, ingerindo guaraná com formicida numa praia carioca. Assis, que completaria 90 anos na próxima segunda-feira, 19 de março, tentou afogar-se na praia do Leme, jogar-se de uma janela, e, a mais notória de suas tentativas de suicídio, atirou-se do Corcovado em 1941 — e não morreu.

Mesmo com tão trágico histórico, não se pode dizer que sua vida tenha sido uma sucessão de fracassos. Pelo menos não do ponto de vista profissional. Nascido em Santo Amaro, no interior da Bahia, ele revelou desde cedo pendor para a vida artística e notável inteligência. Há até mesmo uma estranha história segundo a qual teria sido raptado aos seis anos de idade por um homem que não se conformava em ver criança tão brilhante em um local tão pobre.

Lendas à parte, o fato é que aos nove anos José de Assis Valente já vivia em Salvador, longe dos pais e dos irmãos. Era farmacêutico e estudava desenho e escultura no Liceu de Artes e Ofícios. Algumas vezes, entretanto, deixou a cidade para acompanhar um circo pelo interior baiano, onde atuava como artista e comediante. Mais tarde fez o curso de prótese dentária. Ou seja, um homem de múltiplos interesses e talentos, que nunca conseguiu se decidir definitivamente por uma ocupação.

Sucesso profissional em várias frentes
Depois que foi para o Rio de Janeiro, em 1927, trabalhou como ilustrador e como protético antes de começar a fazer sambas, por influência de Heitor dos Prazeres, o bamba da Praça Onze com quem fez amizade no início da década de 30. Suas ilustrações eram boas a ponto de serem publicadas em revistas de prestígio, como a carioca Fon Fon. Do seu ofício de protético, dizem que era o melhor de sua época, e manteve a profissão por toda a vida. Seus sambas foram gravados pelos maiores intérpretes de então: Francisco Alves, Carlos Galhardo, Orlando Silva, Aracy de Almeida, as irmãs Aurora e Carmen Miranda, entre muitos outros.

Na vida pessoal, no entanto, a situação era outra. A própria incapacidade de se decidir pela vida de sambista serve como indício de sua indefinição íntima. Segundo seus biógrafos (Francisco Duarte Silva e Dulcinéa Nunes Gomes, autores de A Jovialidade Trágica de José Assis Valente — Ed. Martins Fontes, 1989) e as pessoas que conviveram com ele, Assis era um homossexual reprimido pela ambiente machista e moralista em que transitava, o mundo boêmio carioca dos anos 30, 40 e 50. Casado e pai de uma filha, esbanjava dinheiro com seus amantes, e por isso contraiu sérias dívidas, apontadas como um dos motivos de seu suicídio na carta que deixou. Além disso, andava "muito cansado das injustiças e muito enojado de tudo", conforme escreveu.

Carmen Miranda: amor e mágoa
Sua carreira musical, no entanto, foi marcada pelo sucesso de músicas espantosamente alegres, dada sua personalidade "triste e amargurada", para usar as expressões que utilizou em Alegria. Neste samba diz "Minha gente era triste e amargurada/ inventou a batucada/ pra deixar de padecer/ salve o prazer /salve o prazer". Assis Valente inventou sua própria batucada, brejeira e satírica, capaz de conquistar a exigente Carmen Miranda, mas nem assim deixou de padecer completamente. Carmen foi sua principal e mais querida intérprete, por quem tinha verdadeira fixação. Depois de ter gravado em 1933 Good Bye Boy e Etc., a Pequena Notável se encantou com o compositor baiano, e eternizou pérolas como Recenseamento, ...E o Mundo Não se Acabou (que, recentemente, ganhou versões de Paula Toller, Adriana Calcanhotto ouvir 30s e Ney Matogrosso ouvir 30s), Uva de Caminhão e Camisa Listrada.

Carmen foi também um dos maiores motivos de desgosto para Assis. Em 1940, quando voltou de uma temporada nos Estados Unidos, ela pediu músicas para gravar. O sambista lhe ofereceu Recenseamento e Brasil Pandeiro. Carmen gostou da primeira, mas desprezou a segunda, dizendo que era muito "borocoxô", que não prestava. O samba que começa dizendo "chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor" provou-se um sucesso atemporal, tendo estourado três vezes até hoje. Primeiro, no mesmo ano de 40 pelas vozes dos Anjos do Inferno. Em 1972 novamente com os Novos Baianos, e em 94 mais uma vez, a reboque de uma milionária campanha publicitária de chinelos patrocinadores da Seleção Brasileira na Copa do Mundo dos EUA, em que o Brasil sagrou-se campeão.

"A recusa da Carmen doeu muito nele, ele nunca mais esqueceu", diz a cantora Marlene, que gravou em 1956 seu primeiro LP, inteiramente dedicado ao repertório de Assis (Marlene Apresenta Sucessos de Assis Valente). "Foi o violonista Luiz Bittencourt quem sugeriu que eu gravasse Assis, e eu até hoje acho que fiz muito bem em aceitar a sugestão. Era uma época em que ele passava por muita dificuldade financeira, ninguém mais o gravava. O meu disco foi uma grande alegria para ele", lembra Marlene. A cantora se recorda ainda da personalidade do compositor: "Ele era muito tímido, muito fechado, acho que tinha vergonha que alguém descobrisse que era homossexual. Imagina, naquela época! Nunca o vi com um amigo, ele devia ser muito sozinho. Mas era uma pessoa muito delicada, interessante, inteligente e educadíssima."

O primeiro sucesso de Assis foi em 1932, quando Araci Côrtes gravou o impagável Tem Francesa no Morro, que satiriza a moda francófona da época por meio de versos como "Si vous frequente macumbe entrer na virada e fini pour sambar/ dance ioiô, dance iaiá". No ano seguinte seria a vez de Carlos Galhardo ter enorme êxito com a marcha natalina Boas Festas, um clássico regravado muitas vezes — Caetano Veloso a cantou, em 68, na TV, à moda tropicalista, com uma arma apontada para a cabeça. Também em 33, Aurora Miranda e Francisco Alves gravaram Cai, Cai, Balão, música inspirada nas festas juninas e que se tornou parte do patrimônio musical infantil brasileiro.

Ponto de vista feminino
A década de 30 foi o auge da carreira de Assis Valente, lançando suas músicas de maior sucesso pelas vozes privilegiadas dos grandes nomes do rádio. Transitava com facilidade pelo meio, tendo sido inclusive o introdutor do conterrâneo Dorival Caymmi no ambiente artístico. Depois do rompimento com Carmen e do êxito de Brasil Pandeiro na gravação dos Anjos do Inferno, a vida de Assis foi lentamente entrando em um período de declínio. O ano de 1941 foi o do seu casamento e da tentativa de suicídio atirando-se do Corcovado. Alguns sucessos esparsos permearam aquela década, como o pungente Fez Bobagem, gravado por Aracy de Almeida. É possível que este samba, falando do ponto de vista feminino ("Meu moreno fez bobagem/ maltratou meu pobre coração"), tenha sido feito para um de seus amantes, assim como Camisa Listrada ("Não quero e não consinto o meu querido debochar de mim").

Depois de sua morte, Assis teve esparsas homenagens. Foi muito gravado por cantoras. Aracy de Almeida, Elza Soares, Isaura Garcia, Márcia, Maria Alcina, Simone, Olívia Byington, Wanderléa, Nara Leão, Maria Bethânia, Zezé Motta, Clara Nunes, Vanusa, Eliete Negreiros e Ademilde Fonseca já se arriscaram no repertório valentiano ao longo dos anos. Ultimamente, ganhou interpretações de Eduardo Dussek (ex-Dusek), que recriou o repertório de Carmen, e acaba de ser gravado por Ney Matogrosso em seu recém-lançado Batuque. Disco só com músicas suas é possível achar um, gravado em 86 e relançado em CD pela coleção Acervo Funarte ouvir 30s. Em 95 ficou em cartaz no Rio de Janeiro o musical O Samba Valente de Assis, um panorama sobre a vida do sambista.