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"Um dia, Assis não se sabe como, o rapaz começou a bater pandeiro. Tanto que surrou, que sentiu sua alma vestida de malandro, com sua calça listrada, camisa de meia manga "palheta", e com muita vontade de brigar, tornou-se um dos nossos grandes compositores e sambistas daquela época ".
















domingo, 30 de maio de 2010

Assis Valente: um esquecido clássico da música

Assis Valente e Dorival Caymmi são os compositores baianos mais importantes da história da canção brasileira anterior à bossa nova. Caymmi, justificadamente, tem sido sempre cantado e laureado ao longo dos anos. Assis, por incrível que pareça, é pouco lembrado e, por apenas meia dúzia de canções (Brasil pandeiro, Boas festas, Fez bobagem, Camisa listada, Alegria e E o mundo não se acabou), todas clássicos da nossa música. João Gilberto sempre cantou Assis em shows, mas nunca o gravou, passando a bola pros Novos Baianos, que relançaram Brasil pandeiro no antológico Acabou chorare, de 72. Caetano citou um trecho grande de Alegria (parceria com Durval Maia) em Festa Imodesta, gravada por Chico Buarque em 75. Nara e Bethânia cantaram, respectivamente, Fez bobagem e Camisa Listada e, juntas, Minha embaixada chegou. E, mais recentemente, Adriana Calcanhoto reinterpretou E o mundo não se acabou. É pouco pra o segundo compositor mais gravado por Carmem Miranda (Ary Barroso é o primeiro), criador da canção junina (Cai cai balão)e autor da mais bela música de Natal (Boas Festas). Ainda mais, quando se leva em conta que Assis é um compositor originalíssimo, cuja obra não perdeu o vigor com o passar do tempo.
Assis era um cronista sutil do Brasil das décadas de 30 e 40, fazendo transparecer as tensões sociais através da leveza e do humor provocativo, aproximando-se, nesse sentido, de Noel Rosa. Mas Assis não é um virtuose verbal como Noel, é mais direto e sexualmente mais malicioso, como se pode ver na estrofe final de E o mundo não se acabou, na qual o sujeito, acreditando no boato de que o apocalipse estaria próximo, diz: "chamei um gajo com quem não me dava/ e perdoei a sua ingratidão/ e festejando o acontecimento/ gastei com ele mais quinhentão/ agora eu soube que o gajo anda/ dizendo coisa que não se passou/ vai ter barulho e vai ter confusão/ por que o mundo não se acabou".
Comparando Assis a Ary Barroso, os dois fizeram sambas-exaltação, mas o primeiro é desafiador em Brasil pandeiro, algo impensável no Ary de Aquarela do Brasil. E, mais interessante, Assis Valente consegue ser ufanista e crítico a um só tempo, no samba-choro Recenseamento, obra-prima gravada por Carmem Miranda: "Em mil novecentos e quarenta/ lá no morro começaram o recenseamento/ e o agente recenseador/ esmiuçou a minha vida que foi um horror/ e quando viu a minha mão sem aliança/ encarou para a criança que no chão dormia/ e perguntou se meu moreno era decente/ se era do batente ou era da folia/ / obediente, sou a tudo que é da lei/ fiquei logo sossegada e falei então/ o meu moreno é brasileiro, é fuzileiro/ e é quem sai com a bandeira do seu batalhão/ a minha casa não tem nada de grandeza/ nós vivemos na fartura sem dever nenhum tostão/ tem um pandeiro, tem cuíca e tamborim / um reco-reco, um cavaquinho e um violão". Há nestes versos a descrição da pobreza aliada à consciência do manancial de cultura de origem popular ¿ no caso, a música - como seminal pra definir nossa identidade. Mais adiante, a protagonista do samba passa do concreto (cavaquinho, violão etc) ao simbólico na exibição de suas (nossas) riquezas: "Fiquei pensando e comecei a descrever/ tudo tudo de valor que o meu Brasil me deu/ um céu azul, um pão de açúcar sem farelo/ um pano verde e amarelo/ tudo isso é meu".
Em Elogio da raça, Assis é abusadamente baiano, quando diz que "autoridade tem que dar/ carta branca para o nego vadiar" e justifica: "pois ele é um cavalheiro/ e basta ser brasileiro/ pra saber se comportar". Ao contrário da malandragem cantada pelos sambistas do Estácio e por Noel, a vadiagem em Assis adquire status de bem cultural, sempre de baixo pra cima, subvertendo a oficialidade.
Porém todo enaltecimento da alegria e da "gente bronzeada" deixam entrever uma poética do dilaceramento, como em Alegria: "vou cantando/ fingindo alegria/ para a humanidade não me ver chorar". Muito já se falou da bissexualidade de Assis e da sua nebulosa origem familiar pra justificar o sujeito dividido que transparece em suas canções, mas o que importa aqui é demonstrar a pertinência estética da sua música, presente em canções menos conhecidas, mas tão boas quanto seus clássicos. Lembro de uma conversa com Caetano, na qual ele mostrava-se admirado ante à excelência da parte mais obscura da obra de Assis Valente, que não se encontra em lps ou cds comercializados.
Desta safra, em Foi pouco, a auto-ironia soa desconcertante: "meu amor me desprezou/ me abandonou/ foi pouco/ estou ficando louco/ já perdi o jeito/ bem feito". Já em Deixa o passado, a eloqüência é a de um punk avant la lettre, e para dar esse efeito, a interpretação intensa do Bando da Lua é perfeita: "deixa o passado/ deixa o passado morrer/ sem ninguém ter piedade/ (...)se recordar é viver/ eu prefiro morrer/ para não recordar".
Mas Assis é muito mais. Assim como Lamartine Babo, de quem foi parceiro, é pop-dadaísta em Uva de caminhão: "caiu o pano da cuíca em boas condições/ apareceu Branca de Neve com os sete anões/ e na pensão de Dona Estela foram farrear/ quebra quebra gabiroba quero ver quebrar". Em É feio, mas é bom, gravada por Almirante, é enfocado o preconceito de que a música popular tem sido alvo, vista como algo menor, mas o viés aqui é o deboche: "É feio, mas é bom/ deixa quem quiser falar/ a mulata quando samba/ de alegria fico cheio/ a mulata se requebra/ eu acho bom mas acho feio".
Diante de uma sensibilidade tão afinada, nem uma biografia decente foi escrita sobre esse baiano. Sobre o livro A jovialidade trágica de José de Assis Valente, assim se refere Caetano Veloso com acuidade no encarte do disco Tropicália 2: "Assis Valente não merecia aquele casal de biógrafos espíritas que teimaram em tratar sua vida sexual no mesmo clima obscurantista de dissimulação e subterfúgios que era a regra no tempo em que ele viveu e que provavelmente contribuiu para levá-lo ao suicídio".
Por tudo isso, Assis Valente merece ser revisto, cantado, recontado e redescoberto para o bem de quem quer que tenha acesso a uma obra tão rica e reveladora. Por que as gravadoras detentoras dos fonogramas não lançam cds com este Assis menos conhecido nas gravações originais? Provavelmente, porque as gravadoras não devem ter as gravações originais. Então, que recorram a colecionadores como Leon Barg, da Revivendo e a outros pra revelar ao Brasil o Brasil de Assis.

Paquito é músico e produtor.

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